TV em cores ajudou ditadura militar a se manter no poder – Mais Brasília
FolhaPress

TV em cores ajudou ditadura militar a se manter no poder

Lançar a TV em cores reforçava a imagem de um país moderno

“O verde é a cor de mais destaque”, registrou a Folha sobre o primeiro teste oficial de transmissão de TV em cores no Brasil, que ocorreu há 50 anos, em 19 de fevereiro de 1972. Não só as árvores, dizia a reportagem, saltavam aos olhos dos telespectadores encantados com a novidade, como também o uniforme dos militares, que surgiam aos montes na tela. Nada mais propício. A TV em cores era mais uma jogada da ditadura para se manter no poder.

Não foi em uma novela famosa ou em um telejornal importante que o verde-oliva e as outras cores estrearam oficialmente na TV brasileira, e sim na Festa da Uva de Caxias do Sul, cidade natal do então ministro das Comunicações, o coronel Hygino Corsetti. Sua filha, a rainha da festa, apareceu na transmissão, assim como o presidente Emílio Garrastazu Médici, que, de terno cinza e gravata vermelha, cumprimentou astros da TV, como Jô Soares, Francisco Cuoco e Tônia Carrero.

Por trás da patacoada, estava a estratégia do governo de propagar o “milagre econômico”, período entre o fim dos anos 1960 e início dos 1970, em que o forte crescimento econômico brasileiro sustentou o poder da ditadura em sua fase mais violenta. Lançar a TV em cores reforçava a imagem de um país moderno, era a cara da campanha ufanista Pra Frente, Brasil.

Desde 1967, os militares pressionavam as emissoras para que iniciassem a transmissão em cores, já consolidada nos Estados Unidos. Alguns testes haviam ocorrido, os primeiros deles antes mesmo do golpe de 1964.

A Tupi, que inaugurou a televisão brasileira em 1950, foi também pioneira das cores, com uma transmissão experimental de um documentário norte-americano para 22 aparelhos, em 1° de maio de 1963. No dia 9, quem surgiu colorido nas telas foi o presidente João Goulart, que discursou após o enquadramento da bandeira do Brasil.

Outros testes foram feitos, sendo um dos mais marcantes o da transmissão, direto do México, da Copa de 1970, para aparelhos instalados em auditórios da Embratel, a estatal de telecomunicações. A transição para as cores, ainda que fosse também do interesse das redes de TV, era tecnicamente complexa e cara.

O regime militar, então, cansado de esperar, impôs que o teste definitivo seria na festa de Caxias, e o início oficial das transmissões, em 31 de março. No aniversário do golpe, começaria a revolução, que seria lenta, gradual e segura.

Para se ter uma ideia, a Globo, que contava com mais recursos dentre as TVs, só deixaria de ter programas em preto e branco em 1977. Além disso, a quantidade de aparelhos em cores só iria superar a dos antigos no país em 1992, dando sobrevida ao truque de cobrir a tela com um plástico transparente com faixas de diferentes cores para “colorir” toscamente as imagens.

No lançamento da tecnologia, as TVs contaram com o suporte da Embratel e com incentivos fiscais para a compra de equipamentos -uma câmera custava US$ 150 mil, seis vezes o preço da usada para o preto e branco. Por outro lado, tiveram de engolir a imposição das datas e do evento da uva/verde-oliva. Ameaçava-se com a cassação do canal os que descumprissem prazos e cotas de programas em cores.

Era mais um lance do morde-assopra de praxe: os militares fomentavam o crescimento da TV, veículo de alcance nacional considerado estratégico, mas tentavam controlar a programação por meio da censura e de outras ameaças.

No aniversário dos oito anos do golpe entrava no ar o primeiro programa brasileiro gravado inteiramente em cores, o episódio “Meu Primeiro Baile”, da série “Caso Especial”, da Globo, escrito por Janete Clair e dirigido por Daniel Filho. A personagem de Glória Menezes, linda, com echarpe azul, encantava-se com o charme do galã Francisco Cuoco, de camisa vermelha.

Em outras emissoras, as cores surgiram principalmente em especiais de música. Na Tupi, o show colorido se chamou “Mais Cor, Por Favor”, slogan dos televisores Philco, patrocinadora do programa, e teve desfile de moda do costureiro Clodovil e show de Toquinho e Vinicius de Moraes, entre outros, como registra o roteirista Rixa, no “Almanaque da TV”. Uma bela sacada foi exibir “A Pantera Cor-de-Rosa” na sessão de cinema, batizada de “Tupicolor”.

O uso e abuso das cores deu o tom desse primeiro momento, e o símbolo máximo do universo carnavalesco foram os programas de auditório do Chacrinha. Até aí, fazia sentido; o famoso apresentador, que jogava bacalhau no público, era pura festa e anarquia. ​

Mas a empolgação com as cores extrapolou a área do entretenimento, chegando inclusive ao sempre sóbrio Cid Moreira, âncora do “Jornal Nacional”, que entrou no ar com paletós verde, laranja e até quadriculado. Foi preciso enquadrá-lo e vesti-lo com tons pastéis, até para evitar que a cor de sua pele, muito bronzeada pelo hábito de jogar tênis, “estourasse” no vídeo. Em 1975, foi designado um profissional para escolher a roupa de todos os locutores e repórteres. ​

Nada podia manchar o que seria chamado de Padrão Globo de Qualidade, que buscava apuro técnico e excelência artística. Uma “TV de qualidade” era o que queriam os anunciantes e a ditadura do “milagre econômico”. As cores reforçavam no telespectador a sensação de estar diante do “real” e, através das telas, criava-se uma identidade nacional.

Na programação colorida, especialmente nas telenovelas, o brasileiro se reconhecia, ainda que, naquele simulacro de realidade, o Brasil falasse “carioquês”, fosse pouco além da zona sul do Rio e o mais pobre dos personagens sempre tivesse uma casinha charmosa, com cortina florida.
Mas nem tudo eram flores para a ditadura na TV, e por um motivo simples: quem tinha talento para fazer uma programação de qualidade era majoritariamente de esquerda. E as cores realçaram o triângulo amoroso de alta voltagem entre emissoras de TV, militares e oposição ao governo.

A complexidade do jogo de interesses evidencia-se com a primeira novela brasileira em cores, “O Bem-Amado”, exibida pela Globo em 1973. Cartão de visitas do Padrão Globo de Qualidade -e, portanto, do Brasil “do milagre” -, foi a mais cara produção televisiva até então, em parte bancada por fabricantes de televisores, interessados em vender novos aparelhos.

Seu autor era Dias Gomes, que, além de consagrado dramaturgo, atuava no Partido Comunista. A novela contava a história da fictícia Sucupira, cujo prefeito era o corrupto Odorico Paraguaçu, criticado por ter investido uma fortuna na construção de um cemitério que nunca era inaugurado porque ninguém morria na bendita cidade. A censura vetou o uso da palavra “coronel” para Odorico e “capitão” em referência ao bandido Zeca Diabo, mas a crítica à ditadura era muito mais profunda.

A vila do litoral baiano, que vivia sob o autoritarismo e os mandos e desmandos de um político desonesto, nada mais era do que um microcosmo do Brasil. No horário nobre e em cores, zombava-se do país dos absurdos, que podia inaugurar cemitério sem morto ou TV em cores com filha de ministro desfilando na Festa da Uva.

Por Laura Mattos