Cientistas relatam ameaças de morte e agressões durante a pandemia

Estudo da revista Nature ouviu 321 pesquisadores de vários países, inclusive o Brasil

Com mais de 20 anos de experiência em pesquisas com doenças infecciosas, o médico Marcus Vinícius de Lacerda, da Fiocruz de Manaus (AM), precisou de escolta armada no ano passado após o estudo que coordenava demonstrar que a cloroquina não funcionava e não era segura para pacientes de Covid-19.

O pesquisador tornou-se alvo de ameaças de morte e ofensas pessoais em redes sociais por parte de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que ainda hoje defende o uso da substância a despeito da sua ineficácia na Covid-19.

“Foi um linchamento público, tudo muito agressivo, arquitetado, planejado. Muita gente do grupo de pesquisa está em seguimento psicológico até hoje, é muito difícil de superar, deixa sequelas”, relata à reportagem.

O caso de Lacerda não é isolado. Uma pesquisa feita pela revista científica Nature com 321 cientistas de vários países, inclusive o Brasil, mostra que dois terços deles relatam experiências negativas como resultado de suas aparições na mídia ou comentários que fizeram nas redes sociais sobre Covid-19.

Cerca de 15% declararam ter recebido ameaças de morte, 40% mencionam estresse emocional e psicológico, 30% notam prejuízo à reputação. Ameaças físicas ou sexuais atingiram 22% deles. Seis cientistas disseram que foram fisicamente atacados.

Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, precisou de escolta policial após ele e sua família receberem ameaças de morte. Um dos principais virologistas da Bélgica, Marc Van Ranst, a mulher e filho foram levados para um esconderijo secreto, depois que Jürgen Conings, um ex-soldado de extrema direita, jurou vingar-se de virologistas e apoiadores do lockdown. Conings ficou foragido por dias e depois se suicidou.

O consultor médico chefe do Reino Unido, Chris Whitty, foi agarrado e empurrado na rua. O virologista alemão Christian Drosten recebeu um pacote contendo um frasco com um líquido rotulado como “positivo” e uma nota dizendo para bebê-lo.

A microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência, percebeu um aumento dos ataques online contra ela quando começou a falar sobre os tratamentos contra a Covid-19 não comprovados e promovidos pelo governo brasileiro, como a ivermectina, a hidroxicloroquina e o antibiótico azitromicina.

“O Brasil se tornou o primeiro país do mundo a realmente promover a pseudociência como política pública, pois promovemos o uso de medicamentos não comprovados para a Covid-19”, disse Pasternak à Nature.

Um grupo de apoiadores de Bolsonaro tentou processar Pasternak por difamá-lo quando ela o comparou a uma praga em seu programa no YouTube. A ação foi julgada improcedente.

O infectologista Marcus Lacerda também teve que recorrer a advogados para se defender de uma chuva de denúncias apresentadas ao Ministério Público de vários estados, ao Conselho Federal de Medicina e à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) após declarações do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) em seu Twitter exigindo investigação do estudo.

À época, segundo ele, o estudo foi interpretado por alguns como um trabalho feito por “pesquisadores petistas” que queriam usar doses altas de cloroquina de propósito para dar a sensação de que a substância era perigosa.

“Além disso, interpretaram que todos os que morreram foram devido às doses altas, quando na realidade morreram de Covid-19 grave. Muita gente não conhecia o nosso grupo de pesquisa e achou que era um bando de aventureiros. Trabalhamos com malária e cloroquina há 20 anos “, diz Lacerda.

Ainda que pesquisadores que lidam com temas como mudança climática, vacinação e efeitos da violência armada também já tenham sofrido ataques semelhantes por parte de grupos conservadores, o grau de ataques sofridos por cientistas durante a pandemia parece ser algo inédito, segundo o estudo da Nature.

Há uma queixa coletiva no meio científico internacional de que governos, agências de financiamento e sociedades científicas não fizeram o suficiente para defender publicamente os cientistas.

No artigo, alguns pesquisadores dizem que aprenderam a lidar com o assédio, aceitando-o como um efeito colateral desagradável, mas esperado, de levar informações ao público. Para 85% dos entrevistados, as suas experiências com a mídia foram sempre ou na maioria das vezes positivas, mesmo que tenham sido assediados depois.

“Acho que os cientistas precisam de treinamento sobre como se envolver com a mídia e também sobre o que esperar dos trolls –é apenas uma parte da comunicação digital”, escreveu um deles.

O estudo da Nature, porém, sugere que, embora os pesquisadores tentem ignorar a agressão sofrida, isso pode ter um efeito assustador na comunicação científica. Isso porque os cientistas que relataram frequência mais alta de ataques pessoais também se mostraram mais propensos a dizer que suas experiências afetaram muito a disposição de falar com a mídia no futuro.

Para Fiona Fox, executiva-chefe do UK Science Media Centre (SMC), organização em Londres que coleta comentários científicos e organiza coletivas de imprensa para jornalistas, isso é preocupante.

“É uma grande perda se um cientista que estava se envolvendo com a mídia, compartilhando sua experiência, seja retirado de um debate público em um momento em que nunca precisamos tanto dele”, disse ela à reportagem da Nature.

Um tópico que já tem levado muitos cientistas a não comentá-lo é a origem do Sars-CoV-2. Na Austrália e no Reino Unido, os Science Media Centres dizem que têm sido difícil encontrar cientistas que estejam dispostos a falar publicamente sobre o assunto, por medo de serem atacados. A organização britânica afirma, por exemplo, que abordou mais de 20 cientistas para participar de um debate sobre essa questão, mas todos recusaram.

A pesquisa da Nature foi realizada a partir de uma adaptação de um estudo informal do SMC australiano que já tinha captado as ameaças e o sofrimento de um grupo menor de cientistas. A revista pediu então aos centros de mídia científica em Reino Unido, Canadá, Taiwan, Nova Zelândia e Alemanha que enviassem questões a cientistas de suas listas de mídia que costumam opinar sobre Covid-19.

A Nature também enviou e-mails a pesquisadores dos Estados Unidos e do Brasil que foram citados com destaque na mídia.

“Quanto mais proeminente você for, mais agressão receberá”, concluiu a historiadora Heidi Tworek da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver (Canadá), que está estudando a agressão online contra comunicadores de saúde durante a pandemia.

Para ela, esses ataques podem ter pouco a ver com a ciência em si e mais com quem está falando. “Se você é uma mulher ou uma pessoa negra de um grupo marginalizado, a agressão provavelmente vai incluir insultos a suas características pessoais”, observou. A diretora de saúde pública do Canadá, Theresa Tam, por exemplo, é asiática-canadense –e a agressão contra ela incluiu racismo, segundo Tworek.

Mas tanto o SMC australiano quanto a pesquisa da Nature não encontraram nenhuma diferença clara entre as proporções de ameaças violentas recebidas por homens e mulheres.

Por Cláudia Collucci

 

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