Com retorno de audiência de custódia, presos voltam a relatar tortura no Rio – Mais Brasília
FolhaPress

Com retorno de audiência de custódia, presos voltam a relatar tortura no Rio

Na audiência de custódia, a pessoa é apresentada ao juiz em até 24 horas após a prisão

Com o retorno das audiências de custódia, suspensas em grande parte do país desde o início da pandemia da Covid-19, presos voltaram a relatar que sofreram torturas e maus tratos no momento da prisão.

Levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, realizado no segundo semestre do ano passado, indica que 31% das pessoas presas em flagrante entrevistadas pelo órgão disseram ter sofrido agressões, especialmente físicas, no momento da prisão. A porcentagem é similar aos registros nos anos anteriores à pandemia.

Na audiência de custódia, a pessoa é apresentada ao juiz em até 24 horas após a prisão. O juiz analisa a legalidade e a regularidade do flagrante e determina se a prisão será mantida, revogada ou substituída por medidas cautelares. O magistrado também verifica se existem sinais ou relatos de tortura e maus tratos.

Instituições de defesa dos direitos humanos alertaram para o prejuízo da suspensão e da virtualização dessas audiências durante a pandemia, argumentando que o instrumento, criado em 2015, é essencial para a identificação de casos de tortura.

O levantamento da defensoria foi realizado com base em dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e mostrou que a suspensão das audiências teve grave impacto no acompanhamento dos maus tratos.
De março a agosto de 2020, sem as audiências, apenas 0,83% dos autos no Rio de Janeiro indicaram a ocorrência de tortura. Já entre setembro de 2017 e de 2019, em 38,3% das audiências de custódia realizadas na capital fluminense houve relatos de maus tratos.

Novo relatório da defensoria, divulgado nesta quinta-feira (9), aponta que, entre 1.920 entrevistados, 475 disseram ter sofrido agressões. As entrevistas foram coletadas entre agosto, quando as audiências de custódia voltaram a ser realizadas no estado, e dezembro do ano passado. Em 65% dos casos com informação, o agressor foi um policial militar.

Mariana Castro, coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria, afirma que o estudo indica que houve subnotificação das torturas no período de suspensão das audiências.

“Isso mostra a importância das audiências de custódia presenciais para apuração da ocorrência de tortura. Sem elas, não é possível saber se a tortura ocorreu ou não, e, se sim, permitir a tomada de providências, como avaliar de que modo aquela agressão impacta na legalidade da prisão, encaminhamento do custodiado para tratamento médico e investigação sobre a conduta dos agressores”, diz.

Sem a audiência de custódia, a tortura só poderia ser relatada bem depois, no primeiro contato do preso com o juiz, na audiência de instrução e julgamento. Nesse caso, é muito menos comum que os maus tratos sejam denunciados, afirma Carolina Haber, diretora de estudos e pesquisa de acesso à Justiça na Defensoria do Rio de Janeiro.

“Até pelo tempo que já passou. [Esse] É um dos aspectos mais importantes das audiências de custódia presenciais. A violência está ali, visível, acabou de ocorrer. É muito maior a chance de ser relatada ou vista.”

Segundo o levantamento, mais de 90% dos presos são homens e oito em cada dez são pretos ou pardos. No momento da prisão, 60% dos presos foram informados imediatamente sobre a acusação de que eram alvo e também 60% foram comunicados de que poderiam permanecer em silêncio e só falar em juízo.

O relatório também aponta que pelo menos seis em cada dez pessoas presas em flagrante têm a liberdade provisória ou o relaxamento da prisão negados no estado. O órgão analisou o desfecho de todas as 7.426 audiências de custódia realizadas nos cinco meses seguintes à retomada da apresentação presencial do preso ao juízo.

“A lei prevê que, pelo direito à presunção de inocência, a prisão antes da sentença deve ser excepcional, mas, na prática, vemos que ela é extremamente comum, e funciona, na verdade, como um ‘castigo’ pela acusação, sem que se saiba se a pessoa é realmente culpada ou não”, diz Castro.

O levantamento indica que crimes da Lei de Drogas são os mais presentes nas ocorrências, chegando a 34,5% dos casos com informação sobre o tipo de acusação. Furtos correspondem a 17,6% das ocorrências, roubos, por 14%, seguidos de casos de violência doméstica (10,6%).

“Um número elevado de pessoas acusadas de delitos sem gravidade, sem violência ou grave ameaça ou uso de arma de fogo acabam, mesmo assim, mantidas presas preventivamente. Isso contribui enormemente para a superlotação das prisões, agravando o que o STF já reconheceu como um estado de coisas inconstitucional”, afirma a defensora.

Entre os presos com informação, mais de 70% têm até o ensino fundamental completo. Pouco mais da metade têm filhos de até 12 anos. Mais de 90% dos entrevistados tinham alguma atividade remunerada no momento da prisão, sendo que mais de 70% ganhavam até R$ 1.500 mensais, e 71% eram réus primários.

Por Ana Luiza Albuquerque