Favelado é lembrado por voto, lucro e imposto, afirma presidente da Cufa

Preto Zezé critica fim do Bolsa Família e fake news sobre vacina; Dia da Favela é comemorado nesta quinta (4)

Há 121 anos, a palavra “favela” surgia pela primeira vez em um documento oficial. Vinha junto de adjetivos associados à sujeira, à imoralidade e ao perigo, na visão do chefe da polícia do Rio de Janeiro, se referindo ao Morro da Providência, no centro da cidade.

“Favelados” eram os soldados que lutaram na Guerra de Canudos e depois ocuparam o morro, com a pele manchada pela planta de mesmo nome, comum no sertão nordestino. A data foi oficializada como Dia da Favela e neste ano será celebrada com uma série de eventos pelo país.

Uma das figuras que acompanha a evolução desses territórios há quatro décadas, Preto Zezé, 45, atual presidente nacional da ONG Cufa (Central Única das Favelas), critica um olhar público e privado que, segundo ele, só vê esses locais como fonte de imposto, voto e lucro.

Por outro lado, o ex-lavador de carros que virou empreendedor enaltece um movimento de empoderamento que tem transformado “estigma em carisma”. À reportagem, ele falou também sobre a pandemia e o fim do Bolsa Família.

Pergunta – Qual é a importância do Dia da Favela para o país?
Preto Zezé – Primeiro, foi a primeira vez em que a palavra favela foi citada em documentos oficiais, como um lugar sujo e perigoso, então tem uma importância histórica. Segundo, quem ocupou o Morro da Providência foram os soldados sobreviventes da guerra de Canudos, que retornaram ao Rio e, como não receberam as casas prometidas caso vencessem, ocuparam o espaço. O paralelo disso para hoje é que a população que compõe as favelas são as pessoas despejadas com o fim da escravidão, então existe a importância de se reconhecer nesse território.

Estamos falando de quase 14 milhões de pessoas, segundo a definição do IBGE de “aglomerados subnormais”. Seria o quarto maior estado da federação e, apesar da pandemia, das mortes e de todo o resto, tem um poder de consumo de R$ 119 bilhões por ano [segundo pesquisa do Instituto Locomotiva e Data Favela de 2020]. Então comemorar o Dia da Favela hoje é, ao mesmo tempo que reconhecer todo esse cenário de desigualdade, dar visibilidade às agendas positivas que transformam estigma em carisma e poder. Celebrar essa potência e capacidade de inovar das favelas brasileiras.

Como vê o uso comercial da imagem da favela?
PZ – Está bombado. Agora tudo é preto e tudo é favela, é impressionante. Você vê propaganda com os moleques dançando na parada do ônibus, sem camisa, com a favela ao fundo. Eu penso que esse momento é de a gente da favela também repensar. A gente não pode aceitar mais que a favela seja vista como aquele grande safári ou laboratório, e os favelados como camundongos que vão ser pesquisados e estudados. Ao mesmo tempo, temos que nos qualificar para fazer o “translation” do favelês para a linguagem do homem branco do asfalto.

Por exemplo, [fizemos um fundo em que] priorizamos o grupo mais vulnerável, as mães solteiras, a maioria negra. A partir das mulheres atendidas se desencadeou uma rede de cuidado com as crianças, com os idosos, e elas viraram lideranças. Estamos apresentando uma forma de sobreviver onde o Estado não existe. A favela começa a ser um ator político e econômico estratégico para o país.

A política e o setor privado estão aprendendo a usar o potencial das favelas? O que falta?
PZ – Só lembram da favela quando é para cobrar imposto, pedir voto ou lucrar vendendo produto. Quando a gente entender que, num país desigual como o Brasil, compartilhar riqueza e oportunidade com essa população não é gasto, é investimento, aí sim vamos nos tornar uma nação.

Porque no Brasil não falta dinheiro ou comida. A nossa fome não é um acidente ou um descuido, é um projeto. A concentração de renda é um projeto. Mas, se continuar do jeito que está, com as riquezas e oportunidades na mão de poucos, vamos construir um abismo e um caos danado. E aí o Brasil vai ser só uma ilha de desigualdade, cercada de racismo e mágoa.

Existe uma desigualdade muito grande entre as favelas e dentro das próprias favelas. Como chegar a esses locais muito pobres?
PZ – Lógico que tem as desigualdades regionais, não dá para dizer que um favelado de São Paulo é igual a um favelado do interior do Piauí, mas a dinâmica de vida diante da desigualdade é mais ou menos parecida.

O Brasil tem que se perceber na sua diversidade. Quando se nega isso, se nega a possibilidade de incorporar todas as competências que ele tem. Aí todo mundo vai para a região mais rica, que é São Paulo.

Você também poderia ter um Nordeste rico com tudo que ele produz, e não só visto pelas praias. Ver o Norte não somente como a Amazônia. Se tivermos a relação capital e natureza equilibrada, podemos ser uma superpotência. Mas esse modelo que estão criando para o Brasil, que é o mesmo de 1500, levando nossas riquezas para fora e querendo ser igual à Europa, não tem nada a nos dar.

Uma pesquisa do Data Favela em fevereiro mostrou que 53% dos moradores de favelas tinham medo de a vacina não fazer efeito. Como combater as fake news?
PZ – Informação verdadeira definiu vida e morte na favela. Teve uma mulher que queria levar o marido doente ao hospital, mas ele falava que não ia porque iam dar um veneno para matá-lo e dizer que foi a Covid. Resultado: o cara não foi e morreu.

Teve gente querendo saber a procedência da vacina e eu falei: vocês comem cachorro-quente, linguiça, e agora estão preocupados com a procedência das coisas? Aí eu mostrava um vídeo de como é feita a linguiça. É possível produzir reflexões pedagógicas sem colocar a pessoa como ignorante. Criamos uma agência de digital influencers, nossas redes sociais, preparamos protocolos, informações. A mentira só se enfrenta com a verdade.

Como acha que a substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil vai impactar nas favelas?
PZ – A transferência de renda tem sido importante. A questão do Bolsa Família é mais grave porque você desfaz uma política pública vencedora, importante para que as pessoas tenham o mínimo do mínimo para poder respirar e jogar o jogo. Isso é preocupante demais num momento em que a gente tenta conseguir mais política pública e presença do Estado para proteger quem mais precisa.

Raio-X
Preto Zezé
Francisco José Pereira de Lima, 45, é presidente nacional da Cufa (Central Única das Favelas), ativista, empresário, produtor cultural, escritor e fundador da LIS (Laboratório de Inovação Social). Nasceu na favela das Quadras, em Fortaleza, onde trabalhou como lavador de carros.

Por Júlia Barbon

 

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