Julgamento da boate Kiss completa 1 semana; confira 5 momentos marcantes

Júri se tornou o mais longo do Judiciário gaúcho, superando o do caso do menino Bernardo Boldrini, em 2019

Quase nove anos após o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, o julgamento dos quatro acusados pela tragédia teve início no último dia 1º, em Porto Alegre. Sete dias depois, o juiz Orlando Faccini Neto já ouviu 23 pessoas, entre sobreviventes, testemunhas e informantes.

O júri se tornou o mais longo do Judiciário gaúcho, superando o do caso do menino Bernardo Boldrini, em 2019.
O caso da boate Kiss foi desaforado de Santa Maria para Porto Alegre a pedido de defesas, que questionaram se a cidade onde ocorreu a tragédia, que resultou em 242 mortes, poderia ter júri imparcial.

Quatro réus são acusados por crimes de homicídio por dolo eventual, quando a pessoa assume o risco de matar alguém com suas ações. São eles os sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha (assistente de palco).

Após o primeiro inquérito, que indiciou 16 pessoas, sendo 9 por homicídio, alguns acabaram sendo retirados da lista durante o processo e sobraram os 4 réus atuais, cujos futuros serão definidos por um júri composto por seis homens e uma mulher.

A expectativa em Porto Alegre é que os depoimentos sejam finalizados até a próxima sexta (10) e que o resultado do julgamento saia já no fim de semana, colocando fim ao sofrimento dos sobreviventes e familiares dos mortos.

‘ELES TENTARAM MATAR A GENTE’

No primeiro dia do julgamento, houve o depoimento de Kátia Giani Siqueira, funcionária da Kiss que teve 40% do corpo queimado e ficou com problemas de visão.

Ela confirmou que já havia visto o uso de artefatos pirotécnicos por outras bandas na Kiss, que a casa estava lotada na noite da tragédia, especialmente na região do palco, e que viu pessoas confundindo a porta da saída com a dos banheiros, depois do início do fogo.

Em outro momento, ela disse que a boate era um labirinto, ressaltando que, mesmo ela, que trabalhava no local, teve dificuldades para encontrar a saída.

“Com todas as coisas que eles fizeram, com a elevação do palco, com a colocação de espuma, eles tentaram matar a gente”, disse, emocionada.

SEM SINALIZAÇÃO OU ALARME

No segundo dia, os sobreviventes Emanuel Pastl e Jéssica Montardo Rosado, e o engenheiro Miguel Ângelo Teixeira Pedroso depuseram e falaram das falhas que perceberam na noite da tragédia.

“Quando deu o princípio de incêndio, não soou nenhum alarme, não estava clara a rota de saída de emergência e também não teve iluminação. Eu não tinha visualização nenhuma. Não me lembro de ter visto extintor”, disse Pastl.

Pedroso afirmou que teria desaconselhado o uso da espuma isolante na casa noturna. “Só um leigo e ignorante na área poderia achar que espuma fosse conveniente dentro de uma boate”, afirmou.

FOGOS PARA ÁREA EXTERNA

O momento marcante do terceiro dia de julgamento foi o depoime nto de Daniel Rodrigues da Silva, dono da loja onde foi comprado o artefato pirotécnico que incendiou a boate.

Ele afirmou que seu funcionário havia relatado que o réu Luciano Bonilha optou por comprar artefatos mais baratos e que tinha conhecimento que eles eram para uso em área externa.

Com a declaração, o advogado de Bonilha, Jean Severo, exaltou-se em dois momentos, discutindo com a testemunha, e foi ameaçado pelo juiz de ser tirado da sala. “A próxima que o senhor me fizer, o senhor não vai mais ficar aqui. A bancada de defesa é muito grande. O senhor me respeite aqui”, disse o juiz.

DRAMA NO SALVAMENTO DAS VÍTIMAS

Outro depoimento que emocionou pessoas presentes no tribunal foi o da vítima Delvani Brondani Rosso, 29, no quinto dia. Ele relatou que se despediu da família e pediu perdão enquanto caía em meio ao incêndio. Acabou salvo pelo irmão, Jovani, mas três amigos morreram.

“Ele [irmão] me contou que tirou a camisa, fez um filtro, atou e entrava rastejando, por baixo da fumaça, e puxava as pessoas. Ele me contou que os homens ele puxava pelo cinto e as meninas ele puxava pelos cabelos, porque, se ele pegasse por um braço, ele tirava a pele das pessoas. Foi o jeito que ele achou para puxar sem arrancar a pele de ninguém. Eu fui uma das pessoas que ele puxou”, relatou, emocionado.

Os ferimentos que ele sofreu na tragédia fizeram com que ficasse um mês em coma, na UTI, mais de dois meses internado, precisando reaprender a andar, falar e se alimentar. Ele teve três paradas cardiorrespiratórias e precisou de traqueostomia para sobreviver.

GÁS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NAZISTA

No sétimo dia das oitivas, o depoimento mais marcante foi o do coronel Gerson da Rosa Pereira, ex-chefe do Comando Regional dos Bombeiros de Santa Maria (RS), que foi o primeiro condenado no processo, em 2015, por fraude processual. Segundo o Ministério Público, ele enviou à polícia documentos que não faziam parte do plano de prevenção contra incêndio da boate.

Em seu depoimento, ele se defendeu e destacou que as pessoas morreram na Kiss vítimas do gás tóxico.

“De uma coisa eu tenho certeza, não foram vítimas de incêndio, porque o incêndio carboniza”, afirmou. “Foi da inalação do gás emitido por aquela espuma que incendiou no dia, parece que composta de cianeto, um gás letal conhecido historicamente muito empregado nos campos de concentração, no período nazista.”

Outro destaque do dia foi o sonorizador Venâncio da Silva Anschau, 40, responsável por operar o som da banda Gurizada Fandangueira. Ele disse ter sido o responsável por desligar os microfones em meio ao incêndio.

“Quando o outro rapaz [que não era da banda] sobe no palco, eu não tenho a dimensão do que está acontecendo e eu desabilito o áudio. Eu desabilitei. Errei. Errei. Mas desabilitei o áudio”, disse ele, chorando, ao juiz Orlando Faccini Neto.

Por Claudinei Queiroz 

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