Médicos da Santa Casa usam paciente e recurso do SUS em curso particular de R$ 2 mi

Médicos da instituição apontam descontentamento com a situação

Uma empresa privada, comandada por um casal de médicos da Santa Casa de São Paulo, vem realizando cursos de especialização que chegam a custar mais de R$ 70 mil por aluno dentro do próprio hospital filantrópico, usando pacientes e recursos do SUS.

Alguns pacientes, conforme apuração da Folha de S.Paulo, afirmam que não foram informadas de que estariam expostas a intervenções cirúrgicas realizadas por profissionais em aprendizado. Para especialistas, isso pode configurar irregularidade grave.

Médicos da instituição apontam descontentamento com a situação porque, segundo eles, os cursos trazem prejuízos financeiros e educacionais -já que os residentes seriam desviados de funções e as cirurgias realizadas nas aulas têm valores defasados em relação à tabela do SUS.

A direção da Santa Casa nega qualquer irregularidade e diz que a parceira faz a instituição receber recurso adicional, que é revertido “integralmente na assistência que presta à população”.
Ainda segundo os profissionais ouvidos pela reportagem, as pacientes submetidas a operação no curso teriam preferência até mesmo sobre pacientes oncológicos.

Os cursos são coordenados pelo Naveg, associação criada em maio de 2020 pelo diretor do departamento de Obstetrícia e Ginecologia, Paulo Ayroza Ribeiro, e pela mulher dele, Helizabet Ayroza Ribeiro, chefe do setor de Endoscopia e Endometriose do departamento.

De acordo com a Santa Casa, os cursos são coordenados pela empresa em parceria com o Ipitec, instituto criado pelo hospital para fomento de pesquisas e ensino, mas só há referência a eles no site do Naveg.

O carro-chefe é a pós-graduação em Endoscopia Ginecológica e Ginecologia Minimamente Invasiva, que rende mais de R$ 2 milhões por edição. Ele sai por R$ 71,5 mil -são R$ 65 mil do curso, mais matrícula de R$ 6.500.
Ao todo, são 30 vagas para profissionais de todo o país. Atualmente, segundo o hospital, há 28 matriculados. Essa é a segunda edição da pós-graduação.

Ainda segundo a Santa Casa, que tinha uma dívida estimada em R$ 400 milhões, as mensalidades do curso são divididas em duas partes: 70% ficam com o Naveg, e 30%, com o hospital.
Segundo a instituição, a Naveg fica com a maior parte porque “efetua o pagamento das despesas administrativas e de apoio, alimentação, manutenção de equipamentos e a remuneração dos profissionais” envolvidos. “Aos dois médicos coordenadores aqui mencionados são repassados menos de 20% dos valores”, informa o hospital (leia mais abaixo).

As pacientes usadas nos cursos são mulheres que necessitam intervenções cirúrgicas de pequenas e médias complexidades. Todas são oriundas do departamento comandado por Ayroza Ribeiro.

Um grupo de médicos ouvidos pela Folha de S.Paulo afirma que, nos prontuários delas, tão logo diagnosticada a necessidade de intervenções cirúrgicas, já há a indicação de que serão encaminhadas para a “pós-graduação”. A reportagem teve acesso a prontuários com esse apontamento.

Mas as pacientes nem sempre sabiam dessa condição. A Folha de S.Paulo localizou cinco mulheres que foram operadas pela equipe do Naveg. Duas disseram que foram informadas e não viram problemas em participar do aprendizado dos médicos.

Já as outras três dizem não terem dado nenhuma autorização para serem operadas em um curso e que assinaram apenas documentos sobre a aplicação de anestesia e/ou para retirada de algum órgão. A reportagem optou por preservar a identidade das pacientes.

Para o médico Bráulio Luna Filho, ex-presidente da Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo), toda intervenção cirúrgica com participação ou presença de alunos deve ser informada de forma clara ao paciente, que precisa assinar um termo de anuência com essa situação.

“Não basta ser informado por boca. Ele tem que assinar isso. Isso se chama informe de consentimento. Se o paciente falar depois que não entendeu, que não é isso, é ilegal.”

De acordo com médicos da Santa Casa, os residentes são convocados para trabalhar nos finais de semana dos cursos (uma vez por mês), sem remuneração ou certificado. Esses profissionais em treinamento, que prestam concurso para residência, preparam as salas para os alunos pagantes operarem, segundo eles.

Para a advogada Maria Luiza Gorga, especializada em crimes médicos, o cenário que envolve os médicos e um hospital do SUS pode ser, em tese, enquadrado como violação ética e improbidade administrativa. Ela fala do assunto de maneira geral e não do caso específico da Santa Casa.

“Existe um enriquecimento ilícito em cima do bem público e também está atentando contra os princípios da administração, que são impessoalidade, legalidade etc.”

De acordo com o advogado Henderson Furst, especialista em direito médico, uma instituição de natureza público-privada que atende pelo SUS acaba tendo uma relação com paciente como se fosse o estado atuando.

Quanto às reclamações dos residentes, ele afirma que, se comprovadas, podem ocasionar implicações legais sobre os responsáveis. “Se este residente está sendo desviado de outras finalidades que não aquela na porta da residência e sua formação técnica, especialmente fora da carga de horário deles e fora do horário regular dele, há um desvio de finalidade do residente que é algo ilegal também.”

Entidade nega irregularidades A Folha de S.Paulo solicitou entrevistas com o casal de médicos e, ainda, com a superintendente da Santa Casa, Maria Dulce Cardenuto. Todos declinaram alegando falta de espaço na agenda. Concordaram, porém, em responder as questões por escrito. As respostas foram enviadas de forma conjunta.

A entidade afirma não ver problema na relação com a empresa privada. “Todo processo que possa gerar conhecimento e ao mesmo tempo melhorar o cuidado ao paciente interessa à Santa Casa.”

Ainda segundo a Santa Casa, a parceira é importante porque a instituição recebe recurso adicional, que é revertido “integralmente na assistência que presta à população”. “A Santa Casa, como hospital de ensino, cumpre seu compromisso assistencial e de capacitação de médicos, que replicarão os aprendizados em todos os locais do Brasil”, diz.

Sobre a suposta falta de devido aviso às pacientes, a Santa Casa afirma que elas foram informadas, sim, da situação, “como em todas as outras situações em nossa instituição”. A reportagem solicitou envio de cópia das autorizações, mas o pedido foi negado. “Não podemos enviar documentos de prontuário que são sigilosos.”

Sobre a suposta utilização de material e pacientes do SUS, a Santa Casa diz não haver irregularidade porque “o curso em nada se difere da rotina de ensino médico praticada na Santa Casa: as cirurgias são realizadas por profissionais experientes que contam com o auxílio de médicos em treinamento nos seus diversos níveis”.

Sobre o suposto desvio de função dos residentes, o hospital diz não haver reclamações de profissionais e que eles cumprem horários previstos. “Em algumas situações o médico residente irá apenas observar, em outras instrumentar, em outras pode auxiliar o médico supervisor e realizar gestos sob supervisão. Assim sendo, os comentários sobre a atuação não são pertinentes.”

Por Rogério Pagnan e Isabella Menon

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