Tese usada para condenar réus da boate Kiss é questionada por especialistas

A acusação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que apontou crime doloso contra a vida (intencional) e levou o caso a júri popular

Depois de quase nove anos desde a tragédia e dez dias de júri, os quatro acusados pelas 242 mortes e mais de 600 feridos na boate Kiss foram condenados no dia 10 de dezembro.

A acusação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que apontou crime doloso contra a vida (intencional) e levou o caso a júri popular, porém, segue controversa entre especialistas.

Foram condenados os sócios-proprietários da boate, Elissandro Callegaro Spohr (22 anos e seis meses) e Mauro Londero Hoffmann (19 anos e seis meses), o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o assistente de palco Luciano Bonilha Leão (ambos a 18 anos).

Cabe recurso da sentença assinada pelo juiz Orlando Faccini Neto.

A controvérsia se dá em torno da tese do dolo eventual, tema difícil mesmo nos debates acadêmicos.

Durante o julgamento, advogados de defesa citaram a definição sobre dolo eventual segundo o livro “O Crime Doloso”, de um dos promotores do caso, David Medina da Silva. Um dos defensores chegou a rasgar páginas da obra diante dos jurados.

Medina estuda a questão há mais de 20 anos e tem dois livros sobre o tema.

“A defesa faz a interpretação que quiser do que eu escrevi. A verdade é que o direito é um sistema de interpretação para aplicar a fatos concretos. Neste fato em julgamento, temos muito clara a figura do dolo eventual, porque todas as evidências são de aceitar um risco muito grande”, disse à Folha ainda durante o júri.

“[Não foi adotada] nenhuma precaução. Aí está o dolo eventual. Se não há precaução nenhuma, temos uma situação que é dolosa”, disse.

Alexandre Wunderlich, professor de direito penal da PUC-RS, que também estuda dolo eventual há cerca de duas décadas, discorda. Ele fez um parecer a pedido da defesa de Spohr.

Wunderlich diz não defender a absolvição dos réus, mas afirma que a acusação está errada. Para ele, apenas assumir riscos não é suficiente para configurar dolo eventual; é necessário que haja certa concordância com os resultados.

“Nesse caso, é impossível. O vocalista da banda teria que anuir na morte do gaiteiro, do irmão, o dono da boate teria que assumir o risco, mas vai anuir na possibilidade de morte da esposa grávida, que estava lá?”, questiona.

“O mais constrangedor é que o Ministério Público sabe que isso está tecnicamente errado, mas usa do fenômeno jurídico do dolo eventual para uma responsabilização por penas altas. Isso se chama populismo penal”, afirma Wunderlich.

“Esse julgamento acaba com o último fiapo de esperança da ciência penal no Brasil. Ele é terrível sob o ponto de vista da responsabilidade penal subjetiva e individual. No julgamento se fez tábula rasa, é a falência da instituição do júri no país”, diz.

Ana Elisa Bechara, professora de direito penal da USP, também vê confusão entre as figuras de dolo e culpa no caso.

“Poderia ter sido evitada [a tragédia], há responsabilidade, mas tem uma análise técnica da qual não podemos escapar. Quando se passa por cima dos conceitos técnicos de Justiça para julgar conforme uma ansiedade da sociedade, a gente abre uma porta perigosa, a do arbítrio, de cada um de nós, amanhã, poder ser julgado de forma subjetiva, não de acordo com o conhecimento técnico”, afirma.

“[No dolo eventual], eu conheço o resultado como provável, não certo, e a minha vontade também é flexibilizada porque eu não quero o resultado diretamente, mas consinto ou sou indiferente com a sua produção. Provavelmente vai causar o resultado e eu falo: dane-se”, diz.

“Num caso como esse, quando você diz que essas pessoas conheciam esse resultado morte como muito provável e ficaram indiferentes, você está dizendo que elas eram, no mínimo, suicidas.”

Na avaliação de Maurício Dieter, professor de criminologia na USP, o problema principal não está na distinção entre dolo e culpa.

“Em uma prova de direito penal, o gabarito do caso da boate Kiss, provavelmente, seria incêndio com resultado morte. Isso não é competência do júri, é julgado pelo juiz comum, com pena de 6 a 12 anos”, diz.

“Considerando ainda outras possíveis causas de aumento, poderia chegar ao equivalente ao que foi aplicado”, calcula Dieter.

Para ele, as evidências apresentadas indicam que não houve dolo eventual pelos acusados.

“Seguramente, eles não levaram a sério que a soma de fatores como a espuma e o uso de pirotecnia poderia levar ao incêndio da boate.

Mas há um crime específico para isso. Não seria necessário forçar uma acusação apenas para fins de levar a júri popular”, diz.

Outro crítico da acusação, Clóvis Bozza Neto, defensor público estadual do Rio Grande do Sul, diz que nenhuma das condutas dos acusados leva a acreditar que eles teriam previsto o que poderia acontecer, aceito os resultados e assumido o risco.

“Isso não quer dizer que eles não sejam responsáveis, que não possam e devam responder por outros fatos, homicídio culposo, incêndio ou o que o processo determinar, por responsabilidade administrativa ou civil de indenizar as vítimas. São outras discussões”, afirma.

Advogada que trabalha com a AVTSM (Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria), Tâmara Biolo Soares defende a tese da acusação por crime doloso.

“A gente acredita que foi uma sentença e uma condenação corretas, que essas pessoas tinham obrigação de proteger a vida e a integridade de quem estava lá dentro e não fizeram isso”, diz.

“Não foi dolo direto. Obviamente eles não quiseram que isso acontecesse. Mas também não dá para falar em culpa consciente, porque agiram no sentido de criar, assumir e colocar as pessoas no risco de morte”, afirma Soares.

Rodrigo da Silva Brandalise, promotor e coordenador do Centro de Apoio Criminal do Ministério Público gaúcho, diz que os questionamentos sobre dolo eventual no caso estão respondidos pelas provas dos autos e pelo julgamento.

Ele define o dolo como vontade e assunção de risco quanto ao resultado a partir de uma avaliação do sujeito, que se exterioriza com comportamentos.

“Desde o oferecimento da denúncia, alguns meses após o acontecimento do fato, o Ministério Público já afirmava a existência do dolo eventual. Isso era conhecido dos próprios acusados, e o Poder Judiciário reconhecia a viabilidade”, afirma.

“O caso concreto demonstrou -e foi reconhecido pelo Tribunal do Júri- a presença do dolo eventual. O processo apresentou as circunstâncias de riscos assumidos, que resultaram na quantidade de vítimas.”

Por Fernanda Canofre

 

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