Mulheres inspiradoras: Márcia Gilda, a professora que vê na educação o caminho para transformar vidas – Mais Brasília
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Mulheres inspiradoras: Márcia Gilda, a professora que vê na educação o caminho para transformar vidas

O pai de Márcia chegou a vender o rádio da família, valioso, de estimação, para comprar o material escolar de uma das irmãs dela

Foto: Arquivo Mais Brasília

Construção de Brasília, década de 60, trabalhadores de todo o país chegavam diariamente ao Distrito Federal para tentar o sonho de uma vida melhor. Foi assim também com os pais, já falecidos, da professora e servidora pública e também atual diretora do Sindicato dos Professores no Distrito Federal (Sinpro-DF), Márcia Gilda Moreira Costa, de 53 anos.

Nascida em Taguatinga, ela é filha de um marceneiro e  uma lavadeira de roupas, ambos com pouca escolaridade, alfabetizados funcionais. O casal que veio de Minas Gerais para o DF sempre incentivou Márcia a seguir os próprios sonhos. E ela sonhou em ser professora desde muito novinha, por trazer consigo, desde a infância a lembrança dos diálogos com o pai, e exemplos do quanto ele primava pela educação.

“Eu sou a única filha que nasceu aqui, meus pais vieram com minha irmã de colo, eles passaram por muitas dificuldades. Meu pai trabalhou na construção de Brasília. Depois trabalhou com empresários e com servidores públicos. Desde pequenininha eu me lembro que ele falava, vocês [filhos] serão servidores públicos, porque vocês terão direitos a férias, décimo terceiro, vão ter garantia de não serem demitidos”.

Hoje, graduada em Pedagogia e com 27 anos como servidora pública, Márcia Gilda leva consigo a bandeira da educação como meta, como caminho para transformar vidas. E as lembranças do pai, incentivando ela e os irmãos a estudarem, permanecem vivas.

“Essa possibilidade de concluir o ensino médio e, nós somos 6, quatro são professores, para um marceneiro, naquela época, era uma enorme conquista. E até o ensino médio concluso ninguém trabalhava fora, ele não deixava trabalhar para não atrapalhar os estudos. Ele dizia: “Vou fazer meu sacrifício agora para eu ter certeza que serei recompensado”.

O pai de Márcia chegou a vender o rádio da família, valioso, de estimação, para comprar o material escolar de uma das irmãs dela.

“Magistério tem que ter muito material, cartolinas, canetinhas, tintas. O Curso Normal era caro, tanto que, naquela época, quem fazia o Curso Normal, eram famílias mais abastadas. E eu me lembro de ele vender o rádio lá de casa para comprar o material escolar da minha irmã, a mais velha, que foi a primeira a se formar professora, na família.”

Casada, com dois filhos, uma jovem de 16 anos e um garoto de 11, a professora divide com o companheiro os ideais de educação, luta, sindicalismo, democracia; valores que passa aos filhos. Neste Dia Internacional da Mulher, o Mais Brasília entrevistou a professora Márcia Gilda para entender como a educação pode contribuir para a vida das mulheres.

Para a mulher, a educação é um pilar de empoderamento, porque informação é poder, explica Márcia. “Quando você tem a informação você consegue detectar um relacionamento abusivo, um relacionamento explorador em seu ambiente de trabalho. Você identifica o racismo institucional, o racimo ambiental, o racismo religioso, a xenofobia, o machismo, a misoginia, a violência psicológica, a violência patrimonial a que tantas mulheres são submetidas, porque muitas das vezes, em nosso senso comum, acredita-se, acha-se que a violência é só bater. Mas existem violências como a psicológica, que ela mata a alma completamente”.

Essa informação a que se refere a professora as crianças a adquirem na escola. Portanto, se pudesse solucionar algo na legislação brasileira, Márcia Gilda mudaria a maneira de o governo tratar a educação. Para a professora, um destes investimentos prioritários, deveria ser na área da educação integral. Porque, com um ensino integral de qualidade, tanto as crianças teriam acesso à formação ideal, quando as mulheres ganhariam mais empoderamento, principalmente as mulheres das periferias, que precisam trabalhar o dia todo.

“São as mulheres periféricas que mais precisam das escolas em tempo integral. Mas que seja uma educação integral não somente como um depósito de criança, e sim uma educação integral em tempo integral, na sua totalidade, na formação integral do cidadão e da cidadã, aquele cidadão que a gente quer realmente como transformador da sociedade”.

Entre uma pergunta e outra, um assunto e outro, uma pausa para uma xícara de café, a professora foi contando como foi a trajetória dela na área da educação, e sempre lembrando de como era a vida ainda na casa dos pais.

“Na casa de papai, quando nos formávamos e começávamos a trabalhar, cada um já pegava uma conta para pagar, juntamos todos, compramos um carrinho, uma Brasília Amarela, construímos uma casa, porque antes era somente um barraco de madeira. Fomos criados nesse movimento de partilha”.

“Em 91, eu já estava lecionando. Comecei a trabalhar em escolas particulares, porque na época em que eu me formei não havia concursos, tínhamos um governo federal, Fernando Collor, que dizia ao povo que ‘ia caçar os marajás’, e ‘os marajás’ eram os funcionários públicos. Então, não havia concursos. Eu trabalhei durante quase cinco anos em colégios particulares, em 95 eu passei em um concurso do DF e fui chamada em 96.”

Sobre os altos índices de feminicídio em Brasília, Márcia Gilda pontua um fato que chama a atenção: a atual quantidade de cargos vagos na área da segurança pública e a falta de concursos públicos para ocupar essas funções. Ela ainda compara a quantidade de cargos vagos à carreira da educação. “O que acontece na segurança pública do DF, acontece também na educação do DF. A gente está precisando de concurso público na área da segurança”.

Combater a alienação e o machismo, evitando assim casos futuros de feminicídios, também é, para a professora, não somente função da educação formal, mas necessidade de se educar a sociedade como um todo.

“Precisamos investir na educação do homem, porque o próprio homem pode ser um parceiro na luta contra a violência com a mulher. O governo e a iniciativa privada precisam criar ações, fazer cursos para educar este homem”.

Já às mulheres, Márcia diz que, “se fosse dar um conselho às mulheres de hoje, eu diria, invista em você. Porque quando você investe em você, você não espera que o outro faça aquilo por você, você vai perceber que uma relação é uma via de mão-dupla; é um apoiando o outro, e que estar com alguém não significa perder sua individualidade; então investir em você é investir em sua educação, investir em seu autocuidado.”

Para a professora, nos últimos anos surgiu no Brasil uma espécie  de descaso com a educação que, consequentemente, acaba prejudicando o entendimento da sociedade acerca das temáticas sociais, como a violência contra a mulher. Segundo Márcia, o brasileiro está bastante desacreditado na educação porque o país passou recentemente, em 2016, por um movimento de criminalização da educação pública e da carreira do magistério.

“Nessa época, o professor começou a ser rotulado como doutrinador, pessoas de determinados setores da sociedade começaram a atacar a educação. E por que? Porque o papel da educação é tirar a venda dos olhos, é ampliar o horizonte e disseminar a verdade. Quando o professor traz toda a história, mostrando todos os movimentos, desde o Brasil Colônia, a gente se depara com aqueles que acham que a escravidão foi boa, que a miscigenação foi importante para o Brasil, que a ditadura era para consertar o país. O professor é o portador da história, da verdade. Nós começamos a incomodar esse setor da sociedade que queria tomar o poder.”

Para exemplificar, a professora citou episódios com falas de parlamentares da Câmara Legislativa, em sessões na Câmara, afirmaram que “a escola é o lugar mais perigoso para deixar os seus filhos porque eles vão estar em contato com os doutrinadores.”

Conduto, a educadora explica que, transformar uma pessoa em um cidadão é torná-lo crítico também. “Porque sem a criticidade, o que está ruim não vai mudar. Temos que educar nossas crianças para o protagonismo e não para a submissão, não podemos educar crianças para a submissão. Temos que ensinar nossos alunos, desde pequenininhos, que eles têm poder. Que eles podem transformar aquilo que eles acham que não está bom.”

Nesta luta em prol da educação como o caminho para transformar vida, Márcia toca em um ponto crucial, o do racismo que existe no Brasil em pleno século 21, como negros e negras ainda são invisibilizados no país.

“A porta para o negro e a negra entrarem nunca é a porta da frente. Geralmente, no imaginário dessa sociedade, é a porta do serviço menos qualificado, é sempre a porta dos fundos. Mas o passo mais importante para mudar esta situação é a gente entender que ainda existe racismo e precisamos acabar com ele.”, finaliza.