Bienal de São Paulo aposta em mitologias alternativas para debelar o fim do mundo

Artistas evocam seres ancestrais e teorias queer para enfrentar crises atuais com alegria e brincadeira, e não só luto

A extração de prata na região de Zacatecas, no México, começou no século 16. É nesse solo seco, de uma terra arrasada há séculos, que se passa “Sangre Pesada”, ou sangue pesado, fabulação da mexicana Naomi Rincón Gallardo.

Nela, criaturas meio bicho, meio homem revivem mitos pré-colombianos numa estética atual, quase como num baile sob escombros. Ou, na definição da própria artista, uma dança de autodefesa nas ruínas.

“Há esse desejo queer de reivindicar nossos prazeres apesar da devastação”, afirma Gallardo, que apresenta dois trabalhos nesta 34ª Bienal de São Paulo. “Embora haja muita violência, há também essa insistência em buscar o prazer, a alegria e a dignidade.”

A proposta da artista mexicana vai ao encontro de outras obras que apontam para um futuro mesmo neste nosso ensaio de fim do mundo. Em vez de apenas sobreviver a uma condição adversa, há a ideia de clamar também pela alegria e pelo direito de cantar, brincar e dançar com força.

E são muitas as ruínas de nosso tempo –a crise climática, a própria pandemia do coronavírus, as investidas contra direitos de povos originários e o assassinato sistemático da população negra. Gallardo responde a alguns desses problemas a partir de teorias feministas e decoloniais, como ela mesmo se define. Mas há também o resgate de uma perspectiva ancestral do mundo.

“No caso do México, e de muitos outros lugares, cosmologias indígenas trazem uma compreensão diferente da nossa relação com a natureza e com a terra, sagrada, e elas contêm pistas para a sobrevivência da vida neste planeta”, afirma.

Essa intenção propositiva já está no nome da Bienal que começa agora –”Faz Escuro, Mas Eu Canto”. A sonoridade que o verso de Thiago de Mello evoca permeia, por exemplo, os cantos maxacalis que tocarão em parte do pavilhão, e a instalação da nigeriana Zina Saro-Wiwa, onde se escuta uma antiga árvore chamada “Kum” que ocupa um lugar central numa das aldeias do vídeo que a artista apresenta.

E cosmologias indígenas parecem ser fundamentais nos trabalhos que pensam outras possibilidades de existência em meio às crises atuais nesta que é a edição do evento com maior protagonismo de povos originários.

Curador-assistente da Bienal, Paulo Miyada afirma que esta edição aprofunda algo que está na história do evento, a de ser uma “máquina que faz leituras da história e tenta apontar futuros”.

“A presença dos artistas indígenas tem um sentido prospectivo, porque faz pensar que até um tempo não estávamos ouvindo essas vozes. Se eles estão aqui, não podem mais se retirar”, afirma Miyada. “É uma nova voz que daqui em diante estará no debate, e isso antevê que o circuito só pode se transformar.”

Uma dessas artistas é Daiara Tukano, que apresenta agora “Dabukuri no Céu”. São quatro pinturas e quatro grandes mantos plumários, isto é, feitos de pena, que se referem a pássaros centrais para muitos povos da floresta –o urubu-rei, a garça-real, a arara-vermelha e o gavião-real.

“Dabukuri é um encontro tradicional das aldeias, em que as famílias se juntam e cada um leva um presente e uma oferenda, como uma fruta ou um peixe”, afirma ela. Um banco no centro da instalação remete justamente a essa ideia de reunião, em que o visitante pode ir ao encontro desses pássaros.

A potência do encontro que ela e outros artistas que resgatam essas cosmologias indígenas não anulam a violência e o trauma que os povos indígenas sofrem, porém. Tukano afirma que uma das motivações de sua obra é homenagear os que ela e os parentes perderam –e continuam perdendo–durante a pandemia. “Enquanto indígena, nós sempre estamos em luto. Isso além das violências que também têm aumentado de uma maneira muito absurda no contexto desse governo atual.”

É um luto que está também no “Monumento às Sociedades Nativas da América do Sul”, feito entre os anos 1970 e 1980 por Lothar Baumgarten. Apresentado na sétima Documenta,
Enquanto isso, Gustavo Caboco, outro artista indígena, debate a morte e o apagamento em uma obra que dialoga com o meteorito que sobreviveu ao incêndio do Museu Nacional em Kassel, na Alemanha, em 1982, a instalação estampa nos guarda-corpos curvos projetados por Oscar Niemeyer nomes de povos indígenas ameaçados pela violência colonial. e está exposto logo abaixo.

Caboco escreveu seu primeiro livro justamente após esse incêndio –com o título “Baaraz Kawau”, que significa “o campo após o fogo” na língua wapichana, ele rememora a história de uma grande liderança de seu povo, que era também seu tio-avô, e traça um paralelo com a memória de uma borduna, um tipo de arma indígena, que estava no museu.

“Quanto de vida indígena, e quanta ação política, cultural, intelectual que o nosso tio fez está sujeito a um apagamento? Fiz essa relação direta com a borduna, que é esse instrumento de luta e de defesa, mas também que movimenta quando é usado, por exemplo, como um remo”, diz Caboco.

A instalação do artista nesta Bienal foi feita em conjunto com outros parentes. Com animação, pinturas, fotografias e outros objetos, Caboco propõe escutar as pedras e retomar a visão ancestral que elas carregam, como se fossem grandes matriarcas da família, responsáveis por preservar a cultura de um povo.

O caminho dessas pedras também é o curso do próprio fogo ao qual a memória brasileira, simbolizada no meteorito com o qual a instalação dialoga, está submetida. “Coloco essa discussão na ideia desse campo em chamas, desse fogo constante que se espalha seja simbolicamente, seja fisicamente, como no Pantanal, na floresta amazônica, ou em instituições como a Cinemateca, o Museu Nacional e tantas outras”, diz o artista.

O processo de arrancar tudo o que constui algo também aparece na obra do chileno Sebastián Calfuqueo, que vê no tornar oco uma maneira de descartar tudo o que foi ensinado a ele. A performance em vídeo do artista gira em torno do conceito de “ahuecar”, algo como escavar. Já o “hueco” é literalmente um buraco, mas também um xingamento a homossexuais no Chile.

Numa guerra contra os espanhóis, segundo é narrado num poema apresentado na obra, uma das figuras centrais da resistência indígena foi eleito como liderança após resistir ao teste de carregar um tronco nos ombros duas noites sem desvanecer. O artista refaz esse desafio em espaços públicos de Santiago e carrega nos ombros um tronco que está completamente oco. Mas sua versão de um possível novo líder de uma resistência usa saltos altos.

O céu parece estar desabando sobre as nossas cabeças, como a liderança yanomami Davi Kopenawa descreve já descreveu em seu livro “A Queda do Céu”. Mas ir atrás dos pássaros, como no trabalho de Daiara Tukano, é também uma maneira de aprender a fazer a festa com quem ainda voa em liberdade, como define a própria artista.

Por Carolina Moraes

 

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