'Farol de Neblina' faz misto de singela beleza e obscurantismo religioso – Mais Brasília
FolhaPress

‘Farol de Neblina’ faz misto de singela beleza e obscurantismo religioso

Obra virou uma websérie de quatro episódios com direção da cineasta mineira Clarissa Campolina

Wilssa Esser

Por sobrevivência, o teatro em tempos de pandemia vem buscando experimentar vários tipos de interação com linguagens de vídeo. A rigor, “Farol de Neblina” já não é mais teatro, é uma minissérie de quatro episódios, com direção da cineasta mineira Clarissa Campolina.

Ainda assim, é marcante ali a permanência da arte cênica neste exercício de transposição de linguagens. Se não se trata mais de teatro, ele ainda se faz presente nas entranhas da série derivada do espetáculo “Neblina”, que, com direção de Yara de Novaes, chegou a fazer temporada no início de 2020, em Belo Horizonte, antes do fechamento dos palcos.

É verdade que aquilo que vemos na tela não é a filmagem de um espetáculo, mas não é, tampouco, a adaptação cinematográfica de uma peça. A parceria entre Clarissa Campolina e Yara de Novaes propõe um tipo de híbrido.

As filmagens, de modo geral, não foram realizadas em locações realistas. Quase todos os planos da série são filmados sobre um palco. Poderia ser apenas uma homenagem a origem teatral da obra, mas a opção aqui parece ser a de sublinhar o convite à imaginação que possui um palco vazio –ou “quase” vazio, pois mantém a estrutura cenográfica minimalista idealizada por André Cortez para a versão teatral.

A atitude cinematográfica também escolhe enfatizar o jogo entre a atriz Fafá Rennó e o ator Leonardo Fernandes. A câmera está em função deles, parece ir experimentando planos e recortes durante a cena, e não o contrário, como normalmente acontece na indústria cinematográfica, quando atores devem realizar exatamente aquilo que lhes é pedido diante da câmera. Apesar da transposição para a linguagem do vídeo, a série se recusa em completar os espaços, opta por manter vivo esse dado teatral.

Ao mesmo tempo, a atitude criativa da equipe não abre mão de inserir novas informações técnicas na obra. O recurso da montagem cinematográfica reorganiza o conjunto. A decupagem dos episódios trabalha com sobreposições criativas e recortes específicos da câmera que enfatizam pequenos detalhes expressivos dos atores, ou do cenário, de forma bem diversa de como seria num “plano aberto” de um palco de teatro.

Consegue-se, portanto, uma conjugação híbrida que mantém tanto o cinema quanto o teatro determinando o andamento da obra, o que também faz refletir sobre os voláteis sentidos sociais e históricos de ambas as linguagens, para além de velhas ortodoxias que insistem em buscar as essências de cada uma.

Este gesto de recriação, em “Farol de Neblina”, também intensificou alguns sentidos que a peça escrita por Sérgio Roveri adquiriu diante da realidade imposta pela pandemia ao mundo.

A dramaturgia fala sobre as dificuldades de um casal em lidar com um trauma, com os limites de um relacionamento e, sobretudo, com a morte. Hoje, tudo isso ganha uma dimensão social contemporânea. Do mesmo modo, o campo simbólico mobilizado pela lírica da peça, como a neblina densa, a aurora que demora a chegar, o isolamento, a pedra enorme que frustra caminhos planejados, passa a ecoar intensamente na atualidade angustiante em que estamos vivemos.

Há, contudo, uma nota de otimismo, já na dramaturgia. Apesar da dor, mostra-se uma possibilidade de cura, cujo caminho passa pela compreensão e pela aceitação das passagens da vida.

Essa perspectiva é fortemente enfatizada no desenvolvimento da série e ganha destaque na forma como a equipe de criação faz com que ela se conecte à filosofia budista.

Uma referência central do processo de criação foi “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, best-seller de Sogyal Rinpoche, controverso mestre budista tibetano cujas várias acusações de todo tipo de abusos físicos e sexuais não parecem ter abalado sua fama por aqui.

A série se vale dessa filosofia espiritual para sublinhar uma velha retórica, sempre meio ingênua, de aceitação da dor, das inevitabilidades da existência, da finitude da vida, entre outras experiências.

O cenógrafo André Cortez reproduz esse movimento ao colocar em cena uma enorme pedra, imagem de um acúmulo de angústias que paira sobre as personagens, mas que, de repente, como mágica, torna-se leve, um tipo de pêndulo de madeira com movimentos harmônicos e que compõe a imagem meditativa do final.

A espiritualidade cria, enfim, alguma ordem, de inspiração mágico-religiosa, para o caos da vida e do sofrimento. Um misto de singela beleza e velho obscurantismo religioso.

Por: PAULO BIO TOLEDO

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FAROL DE NEBLINA
Onde: No YouTube do CCBB
Direção: Yara de Novaes e Clarissa Campolino
Avaliação: Muito bom