Biden demonstrou a coragem das próprias convicções ao sair do Afeganistão, diz cientista político – Mais Brasília
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Biden demonstrou a coragem das próprias convicções ao sair do Afeganistão, diz cientista político

Biden sabe que não há soluções militares para vários problemas que temos que enfrentar

Joe Biden/Foto: Reprodução arquivo pessoal Joe Biden

A reação ao colapso de Cabul enquanto os EUA realizavam a retirada do Afeganistão foi rápida e global.
Ironicamente, a ocupação de duas décadas dos americanos contribuiu para que o mundo pudesse assistir às cenas terríveis do aeroporto da capital, dos afegãos se agarrando a aviões ao atentado terrorista que matou mais de 180 pessoas. Quando os EUA invadiram o Afeganistão, há 20 anos, quase não havia sinal de celular no país. Hoje, mais de 70% do território é coberto por rede de telefonia móvel.

A guerra mais longa da história americana não poderia acabar bem. Mas poderia ter sido concluída de maneira mais humanitária? A evacuação de 120 mil pessoas em poucos dias foi extraordinária ou uma traição a quem para trás? O cientista político David Rothkopf afirma que o presidente Joe Biden merece crédito pela coragem de sair, não a pancadaria que levou da imprensa americana e internacional.

Rothkopf é autor de vários livros, o mais recente “Traitor: A History of American Betrayal, from Benedict Arnold to Donald Trump” (traidor: uma história da deslealdade americana, de Benedict Arnold a Donald Trump). Ele tem escrito sobre o tema em publicações como o jornal USA Today e a revista The Atlantic, na qual lamentou a reação visceral de jornalistas americanos que, segundo ele, não dão contexto a cinco décadas de erros trágicos na região desde que Jimmy Carter começou a armar mujahedins.

O cientista político lembra ainda que Biden se opôs ao envio de mais tropas ao Afeganistão, em 2009, quando era vice de Barack Obama, e o elogia por comunicar à população que a ocupação militar, além de um fracasso, não é prioridade nos interesses do país. Subsecretário de Comércio na gestão de Bill Clinton, Rothkopf continua próximo do establishment democrata que voltou a Washington em janeiro.

PERGUNTA – Qual a impressão do senhor do discurso feito por Joe Biden em defesa da retirada?
DAVID ROTHKOPF – O discurso foi excepcionalmente detalhado e articulado. Ele explicou os motivos, as datas, a operação, além de responder diretamente às críticas que recebeu. Mencionou que haveria engajamento com o Afeganistão por outros meios. O discurso acenou com uma mudança de direção na política externa, com outras prioridades. Biden é claramente alguém que tem familiaridade com política externa há quase meio século.
Ele ouve críticos, mas assumiu a Presidência com uma visão própria e demonstrou a coragem das próprias convicções, mesmo se forem impopulares. É o oposto de Trump. Não é comum um presidente com meses de mandato demonstrar esse grau de comando de política externa.

Como a retirada e os argumentos de Biden sinalizam uma nova direção?
DR – Biden está dizendo duas coisas importantes. Primeiro, que ele está encerrando a era pós-11 de Setembro, quando as prioridades eram determinadas por reações ao terrorismo. Ele sabe que os EUA precisam lidar com outros desafios como China, segurança cibernética e mudança climática, além de investir mais e melhor em infraestrutura.
Depois, o país tem que se afastar do unilateralismo, dessa noção da América excepcional. Biden sabe que não há soluções militares para vários problemas que temos de enfrentar. O drama de meninas e mulheres afegãs não pode ser resolvido com tropas, mas com diplomacia e outras formas de pressão econômica.

Por que o senhor tem sido tão crítico da reação da mídia americana à retirada?
DR – Há muita gente na mídia que produz uma narrativa. Alguns responderam com base na própria experiência que tiveram no Afeganistão. E houve também a reação às imagens, às notícias urgentes sem contexto. Veja o exemplo do repórter e âncora Jake Tapper, da CNN. A primeira reação dele ao discurso de Biden foi dizer que tinha um tom desafiante. Desafiando quem, se ele é o presidente e cumpriu uma decisão que anunciou como candidato e que a maioria da população apoia? Isto é o jornalista querer que a história seja sobre o que ele sente. A retirada poderia ter sido melhor? O que nessa vida não pode ser melhor?
A realidade é que a política virou uma daquelas lutas entre wrestlers numa jaula. Tem que haver sempre um ganhador e um perdedor. Esqueceram a ideia de “estamos juntos”, necessária para conduzir ou encerrar uma guerra. Com a mentalidade do nós contra eles, não há espaço para governantes avaliarem um fracasso por medo de cometer suicídio político.

Os americanos tradicionalmente não escolhem presidentes com foco em política externa. O senhor acha que Biden se recupera do desgaste apontado pelas pesquisas desde o colapso do governo em Cabul?
DR – Lembro que a eleição de 2020 foi apertada, todas as nossas eleições presidenciais são assim agora porque o país está rachado ao meio. Biden tem sido mais popular do que Trump foi em todo seu mandato. Os americanos estão muito mais preocupados com a economia e com a Covid. A economia americana cresceu 6,6% no último trimestre, há sólida criação de empregos. No final de setembro, Biden tem os dois grandes projetos de investimento público para aprovar no Congresso. Pode acreditar que no fim do mês a atenção vai estar voltada para isso.

Como o senhor vê a entrada de outras potências no vácuo deixado pelos EUA no Afeganistão?
DR – Rússia, que já invadiu o país no passado, e China têm relações com os Talibãs e serão influentes. A China tem mais interesses em jogo, não só pela fronteira comum, mas porque investe em projetos de infraestrutura no Paquistão. Tanto a Rússia como a China têm interesse em manter o extremismo islâmico sob controle em razão das suas populações muçulmanas. No caso da China, é terrível o tratamento que tem dispensado à minoria uigur, e eles precisam evitar atrair simpatias extremistas de fora.

O senhor concorda com os que argumentam que a chamada guerra ao terror, iniciada por George W. Bush, está na origem do que o país viveu sob Trump?
DR – É uma parte do problema, já que, inclusive, o terrorismo não se contraiu, de fato aumentou. Mas o extremismo de direita nos EUA é uma tradição, assim como a aparição de demagogos. O sentimento anti-imigrante aqui data do século 19. Primeiro contra irlandeses que fugiram da fome, depois contra os chineses que construíram ferrovias no Oeste e por aí vai. Parte da divisão que temos hoje começou com Reagan. Depois veio o líder da Câmara Newt Gingrich, em 1994, com o slogan “Contrato com a América”. Quando chegaram com Bush, os neoconservadores estrategistas das invasões do Iraque e do Afeganistão exploraram estas vertentes de jingoísmo e falso senso de patriotismo. Além de, vamos falar claramente, racismo -“Toda esta gente marrom deve ser perigosa”.

Como o senhor vê uma reação americana às crescentes ameaças de Jair Bolsonaro às eleições em 2022?
DR – Bolsonaro está cometendo um grande erro se pensa que os EUA vão cruzar os braços porque querem apoio brasileiro em outras questões, como a do 5G da China. Biden não deve aceitar menos do que respeito a uma eleição transparente e democrática. Se Bolsonaro partir para a tática trumpista, haverá consequências, incluindo ação com órgãos multilaterais. Ele estaria ameaçando isolar o Brasil.

Texto: Lúcia Guimarães