Talibã permite protesto feminino e até críquete em namoro com potências – Mais Brasília
FolhaPress

Talibã permite protesto feminino e até críquete em namoro com potências

Grupo extremista tenta vender imagem de moderação

Protesto feminino em Cabul, no Afeganistão
Foto: Getty Images

A horas, ou dias, de anunciar a composição de seu novo governo no Afeganistão, o grupo extremista Talibã vive um ensaio de lua de mel com a comunidade internacional e propagandeou sua propalada moderação ao permitir protestos femininos e até um jogo de críquete em Cabul.

Na primeira fila do cortejo está a China, potência que desde antes da retomada do poder pelos fundamentalistas islâmicos, em 15 de agosto, já havia dado seu apoio ao grupo.

Mas até a Europa se mexeu. Nesta sexta (3/9), até a União Europeia engrossou o coro de que é necessário diálogo com os novos governantes em Cabul. Não se trata, claro, de reconhecimento diplomático ainda, mas é um passo grande.

“Para apoiar a população afegã, nós teremos de nos engajar com o novo governo”, disse o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, durante encontro de chanceleres do bloco na Eslovênia.

Ele desfiou o usual rosário de condições para que tal diálogo ocorra: respeito aos direitos humanos, particularmente das mulheres e minorias, garantias de liberdade de imprensa e expressão.

Na memória coletiva está o regime brutal de 1996 a 2001 comandado pelo grupo, até ser expulso do poder pelos EUA por ter apoiado os terroristas que perpetraram o 11 de Setembro.

O Talibã diz que desta vez será diferente, mas relatos de perseguições a oponentes e a promessa de aplicar a lei islâmica levantam dúvidas óbvias.

Nesta sexta (3/9), um grupo de mulheres tomou as ruas à frente do palácio presidencial de Cabul com cartazes pedindo participação no novo gabinete talibã, algo inimaginável nos anos 1990. Também havia pedidos por igualdade –os talibãs afirmam que mulheres terão espaço na sociedade, mas separadas dos homens.

Não houve repressão, assim como na véspera em Herat, num sinal de que os talibãs no mínimo estão se restringindo até obterem mais apoio internacional.

Enquanto o pão não vem, o circo se fez presente: o grupo permitiu um jogo de críquete na capital, algo que não acontecia na sua primeira encarnação, e viu suas bandeiras agitadas na torcida junto com as do antigo regime.

Havia forte policiamento e só homens na plateia, mas foi um avanço notável em termos de imagem. No seu governo anterior, o Talibã usava o Estádio Nacional de Cabul para execuções e punições rituais.

As mesmas condicionantes, colocadas de forma mais suave, foram apresentadas em um encontro em Vladivostok pelo presidente russo, Vladimir Putin. “O quão mais rapidamente os talibãs entrarem na família dos povos civilizados, mais fácil será manter contatos”, disse.

Com sua usual obsessão geopolítica, olhando para o temor de instabilidade entre os aliados que lhe garantem profundidade estratégica na Ásia Central, Putin disse que a Rússia “não tem interesse algum na desintegração dos Afeganistão”, citando a presença de terroristas como os do Estado Islâmico no país.

Assim como os chineses, os russos mantêm sua embaixada aberta e operando em Cabul. Os EUA e outros países ocidentais retiraram temporariamente suas representações. Até aqui, os americanos só sinalizaram eventual cooperação para atacar um inimigo comum, a sucursal afegã do EI, uma ironia em si.

Outro atores já estão em campo. O Qatar, que sediou as negociações entre Talibã e EUA que culminaram no acordo de paz de 2020, enviou técnicos para reabrir o aeroporto da capital e um representante de sua diplomacia para conversar com a liderança do grupo em Cabul.

A Turquia, que tem diversos interesses econômicos e projetos no Afeganistão, está negociando com os qataris a operação do aeroporto, que será vital para a retirada adicional de pessoas que querem fugir do Talibã –o grupo havia prometido aos EUA, que completaram sua caótica evacuação na segunda (30), dar livre trânsito a quem desejar.

Mas ninguém tem a mesma posição que a China. Na quinta (2), um dos chefes do escritório talibã em Doha, Abdul Salam Hanafi, ligou para o chanceler assistente em Pequim, Wu Jianghao. Ele anunciou que o grupo quer manter o Afeganistão dentro da Iniciativa Cinturão e Rota, o grande programa econômico que encarna as pretensões geopolíticas chinesas.

O antigo governo afegão havia integrado a iniciativa em 2016. Assim como no Paquistão, país que foi absorvido à sua órbita econômica e militar, a China teme ataques a seus cidadãos que participam de projetos no Afeganistão. O Talibã prometeu segurança a Wu.

Em uma entrevista ao jornal italiano La Repubblica, o porta-voz talibã Zabihullah Mujahid afirmou que a China é “nosso principal parceiro”. “Nós temos ricas minas de cobre, que graças aos chineses serão modernizadas. A China representa nosso ingresso para os mercados mundo afora”, afirmou.

Com efeito, Pequim havia prometido apoio aos talibãs uma semana antes do início da fulminante ofensiva final do grupo, que tomou o poder em 15 dias. O preço foi o fim do apoio a terroristas islâmicos operando na turbulenta província chinesa de maioria muçulmana de Xinjiang, a principal preocupação estratégica do regime comunista na região.

Enquanto os EUA permaneceram atolados por 20 anos no Afeganistão, o foco de Washington na Ásia ficava meio difuso. Agora, apesar das oportunidades de expansão de influência, o problema para a China será a possibilidade de os americanos reforçarem sua aliança com adversários de Pequim no Indo-Pacífico, como seus parceiros do grupo Quad Índia, Japão e Austrália.

O Talibã está finalizando a confecção de seu governo, que deverá ser liderado na prática pelo mulá Abdul Ghani Baradar, um veterano comandante talibã muito próximo do fundador do grupo, o mulá Mohammed Omar (morto em 2013).

Ele deverá comandar o governo de 25 ministros, emulando a estrutura existente, e integrar a shura (conselho tribal) de 12 líderes, que respondem ao chefe espiritual do Talibã, mulá Hibatullah Akhundzada –uma figura reclusa e elusiva, nunca visto em público.

Não se sabe se integrantes de governos passados, com os quais o Talibã conversou recentemente, participarão de alguma forma da nova administração. Ela deve ser anunciada a qualquer momento, mas o processo também pode demorar alguns dias.